Na sacola de pano revestida com óleo seco Strutermutter, uma mão procura um frasco selado a quente entre um protótipo de desvirador giroscópico e uma “maçã branca”, na terceira bolsa média. Essa mesma mão agarra-o. Leva-o à boca de Miguelti depois de parti-lo, com cuidado, pela ponta, contra a parede dura contra a qual estava encostado. Bebeu o líquido doce de um só trago. Que bem que sabia! Tremeu de satisfação, no meio da escuridão em que se encontrava. O líquido tinha sido desenvolvido pelo professor Strutermutter como um elixir revigorante, que reduzia a fadiga e o stress típico que acompanhava os exploradores, principalmente os espeleólogos, sendo também uma excelente fonte vitamínica e proteica. Vivelti dissera-lhe que vira, um dia, o professor a juntar à fervedura um copo de sangue de osga (o que explicaria a montanha de osgas mortas afastadas para um canto do laboratório, ou lá fora, perto dos contentores de reciclagem do professor) mas Miguelti não tinha tido até então a possibilidade de o confirmar. Era fresco e doce. Encostado contra a parede, de pé, sentiu-o descer pelo estômago, instalar-se na barriga. E, quase de imediato, sentiu nova força nos braços e nas pernas, com um relaxamento dos músculos das costas e do pescoço. Serviu esse tempo para reflectir também, sentindo o elixir a fazer os seus efeitos, pelo que já tinha passado, e o que tinha até então acontecido, desde que entrara com Vivelti e o professor na mina. A descoberta de um automóvel pelo menos 50 anos avançado em relação à data em que se encontravam. Uma peculiar derrocada de rochas e a sua separação do resto do grupo, com o aparecimento de uma galeria contínua mesmo à sua frente. A noção de tempo perdido, dobrado, esticado, comprimido, desorientando-o. As revelações – e confirmações – feitas pela outra pessoa que tinha encontrado sobre o lugar em que se encontrava. Os avisos escritos nas paredes. O lago de lava, a esfinge gigante. Agora, a mina.
Mentalmente, preparou-se para o que a seguir viria, e seguiu em frente, pela escuridão. Era quase ridículo, pensou. As paredes à sua volta não vibravam já, mas mesmo sem a ajuda das várias formas de luz, Miguelti continuou pelo corredor serpenteante, uma curva à direita em ângulo recto, e o corredor seguia, até acabar numa parede, e à frente dela um pedestal do tamanho de Miguelti que soltava um brilho sintético azul. Aproximou-se. O brilho soltava-se de uma pedra incrustada no pedestal do altar, cortada octogonalmente, e as palavras “Para recarregar as potencialidades da névoa, voltar a baralhar” – numa talha de latão, entre a pedra azul e o altar. E os ocasionais – mas poucos – arranhões que já tinha visto nas paredes da mina, e a tinta, “duas vezes céu, seis vezes para”; mais arranhadelas. Era difícil perceber o sentimento associado a elas. Tanto a gravação quanto as palavras na parede não queriam dizer nada, pensou, depois de uma análise superficial ao altar e pedestal de pedra. A única fonte de luz era a pedra azul e Miguelti, sem prever perigo, tocou-lhe. O altar retraiu-se com os dois lados a dobrarem-se para dentro num gesto simultâneo e contínuo, dando um maior destaque à pedra azul, que se afastava da parede, o seu pedestal. Miguelti tirou, um pouco lentamente, a mão. Enquanto olhava para as paredes do vértice, que também se dobravam, de lado, puxando o tecto, entre cada uma para a direcção do altar, e do pedestal onde estava a pedra, agarrada por simples dedos de aço trabalhados, e uma luz entrava, a luz do dia, e a visão de nuvens, Miguelti via o céu, enquanto as paredes se dobravam,, e sentia o vento do ar livre; quanto tempo terá mesmo passado desde que entrei na Mina?, interrogou-se. As paredes convergiam para o altar destacado – enquanto a luz da pedra azul se perdia contra a claridade. Decidiu continuar a manter a mente aberta. Olhava para o céu. Mas não viu o Sol.
Perante si os picos e as torres e os telhados de uma casa. A profusão de nuvens em todo o redor, com o céu a explodir em azul. A seu lado era apenas claridade, e céu, e uma plataforma de metal polido cinzento,; e à sua frente, o altar. As paredes obliteraram-se; – não provocadas por mim, pelo meu toque, pensou –; retraíram-se, como seu toque de vida, até chegarem à parede à frente de Miguelti – uma casa gigante – que, por sua vez, dobrou-se em segmentos até à parte de trás do pedestal. Até, dobrando-se, incorporar-se nele, com a pedra a azul em ponto nevrálgico, no centro.
Via agora tudo, com o caminho desimpedido: estava numa enorme plataforma lisa como vidro, com uma casa de mais de quarenta metros de altura, no fim dessa plataforma; com portas de metade do tamanho, algo branca e azul, assemelhando-se a um cruzamento entre um castelo pouco ortodoxo, e uma igreja descaracterizada, com duas torres estreitas na parte da frente. Miguelti, claro, nunca tinha visto algo semelhante, ou da mesma estatura, nem mesmo em gravuras. O céu era uma totalidade de azul e nuvens, claro, forte. Dando o primeiro passo, de cada lado – dois lagos de água rasa, movendo-se em pequenas ondas, pelo vento; no centro, partindo do pedestal, e um pouco mais elevado em relação aos lagos, um caminho em cinzento metálico, e liso como ele de fronteiras rectas, perfeitas; entre ele e a água, havia o único caminho até à casa de pedra, disposta em calçada.
Miguelti nunca considerara nada assim. Era a Casa do Lago, da qual Tupac lhe tinha falado rapidamente. Suspensa numa plataforma no ar. Caindo a água do lago do céu, sem fronteiras ou bordas, da plataforma vasta, aparentemente suspensa no ar. E porém a mina continuava a existir atrás de si. Tirou o cabelo dos olhos que o vento desalinhava, e caminhou em direcção à casa, ainda longe. Parou a olhar em volta, suspenso no meio do céu irreal. Uma existencialidade artificial, sem no entanto conseguir sentir a sua porosidade, quando a sua espessura deveria ser quase como uma folha de papel. (Não,) Era orgânica, pulsando sem restrições temporais, partindo de todos os lados a sua confluência. E era sólida, aceitando o intruso como parte dele. Isto devia preocupar Miguelti, mas não preocupou. Desde novo – mais ainda – sentira sempre que deveria ser a pessoa mais capaz de perceber e compreender a realidade e aguentar e saber ultrapassar as eventuais distorções de lucidez que assolariam as pessoas nas suas vidas; simplesmente por estar em contacto directo com o mundo, com a realidade à sua volta, e sabê-lo a todos os momentos, reconhecendo esse facto. Compreendia-a assim demasiado bem, pensava, para não ser menos do que o seu dever fazê-lo. Decidiu a partir desse momento tomar uma atitude de silêncio. À sua direita, passou por um peixe espetado num espigão de metal como que a imitar um pau, de prata, enfiado entre as pedras, oblíquo. Por cima das escamas de prata do peixe estava gravado “Nanou 2”.
Caminhou até às portas em forma de vitral, olhando ainda e sempre para o céu à sua volta e para as janelas da casa, sem ninguém atrás delas a observá-lo. Empurrou-as e abriu-as, com as duas mãos. O corredor central era largo, com água a correr pelo meio e a cair do céu, sem uma parede ao fundo. A casa era apenas aparentemente oca, pois havia entradas para outras divisões, à esquerda e à direita. Havia tapeçarias gigantes pregadas à parede com motivos ocidentais de guerra. Parou de observar o fundo da casa, mais comprida do que alta percebera, e virou à direita, sem nenhuma razão especial. Pelo canto do olho viu uma forma a movimentar-se no tecto de arquitectura gótica. À direita era uma confusão de entradas para salas altas, mezzanines, espaços abrindo-se todos genéricos com chãos de pedra polida, negra ou bege, ou vermelha e negra, que reflectiam a própria sala, tapeçarias, armaduras em exposição, mesas de jogos, escrivaninhas pequenas encostadas às paredes ou viradas para o centro das salas, cadeirões voltadas para todos os pontos cardeais, escadas escondidas junto às paredes, longas e largas mesas de jantar, contadores com algumas centenas de gavetas, quadros com motivos de caças e paisagens indistintas, biombos nas salas mais afastadas. Percorreu as salas sem uma ordem concreta, olhando para o céu irreal, para os tectos a longos, longos metros do topo da sua cabeça, sentindo a cada toque num vaso, num móvel, num tecido a certeza das coisas. A casa estava para o ar e para a suspensão no céu. Estava aberta para o ar, imensa,, demasiado ampla.
A casa estava só, na solidão do céu. Percorrendo as várias divisões – passando por lances de escadas, contemplando os tectos altos – Miguelti espreitava por vezes por janelas que lhe estavam acessíveis, e não via um solo, lá em baixo, umas imagens longínquas que pudesse vislumbrar. Via um ser, por vezes, por vezes, como que a segui-lo, escondendo-se quando Miguelti o tentava apanhar com os olhos, enquanto passeava pela casa. Viu um espelho de dois metros e caixilho trabalhado encostado à parede de um quarto, nos últimos andares da secção direita. Este não tinha janelas, apenas uma abertura do chão ao tecto, este já de uma altura normal, por onde o vento entrava, e agitava os tecidos da cama de dossel. No espelho estava Tupac, a gesticular e a discutir com uma pequena companhia de circo, juntos a uma caravana de três carrinha vermelhas com as rodas partidas, numa outra secção da Mina, pensou Miguelti. Apareceu onde o espelho não mostrava pelo lado esquerdo, um homem, a sorrir e de braços abertos, com um casaco exuberante de penas cor-de-rosa, antes de a imagem mudar, se desfocar, e o espelho voltar a reflectir o quarto, Miguelti, e o humanóide fêmea de cauda e asas que parecera entrar pela porta quando Miguelti analisava o espelho. Olhou para ela, observando as suas asas recolhidas e imóveis, metálicas, e a sua pele, algo prateada com laivos de azul contra as mudanças de claridade. Olhando para ele, a esfinge voltou a sair do quarto.
Miguelti estava à espera de encontrar um mordomo. A qualquer altura, enquanto passeava pela casa gigante. Seria a esfinge? A esfinge metálica que tinha entrado no quarto depois dele era a criatura que o tinha estado a seguir. Supunha que uma casa desse tamanho e de outro tivesse um mordomo que aparecesse incessantemente, pelos seus chãos de pedra polida e espelhada; com tabuleiros de prata nas mãos com bebidas em copos e jarras; que passasse as mãos, nas suas luvas brancas, pelos pianos ao pé do céu, e pelas harpas gigantes destacadas nos centros das salas; que fosse limpando, sem uma ordem estabelecida, com um espanador os móveis; os contadores e os sofás; os cadeirões e as mesas de jogos, os frontispícios com imagens e letras de alfabetos indecifráveis, as lareiras; que repuxasse os cortinados que o vento teimava, sempre, em fazer voar. As estátuas pequenas de diversos motivos, os espelhos, as jarras, os quadros e as tapeçarias; um mordomo careca de meia-idade, com a idade ignorada (ignorada mesmo, de facto, sendo desconsiderada a sua capacidade para envelhecer, e como tal, à sua peculiar maneira, anulada). Um mordomo, na Casa do ar. Um mordomo, na Casa do Lago, que ficou à porta.
Mas depois percebeu. O mordomo não podia entrar ali, e Miguelti não poderia encontrá-lo. É que o mordomo tinha deixado de existir há muito tempo atrás; quando a casa ficara vazia e lhe fora entregue, pelas artérias transparentes e interligadas, na espiral do tempo indecifrável deste pedaço de céu, a casa para ele cuidar, até ao eventual regresso dos donos (?). Mas os donos (?) nunca regressaram, e o mordomo multiplicou o seu tempo como esticou alguns pedaços de eras não ainda terminadas e distintas; percorrendo a casa incessantemente, pelos seus chãos de pedra polida e espelhada; com tabuleiros de prata nas mãos com bebidas em copos e jarras; que passasse as mãos, nas suas luvas brancas, pelos pianos ao pé do céu, e pelas harpas gigantes destacadas nos centros das salas; que fosse limpando, sem uma ordem estabelecida, com um espanador os móveis; os contadores e os sofás; os cadeirões e as mesas de jogos, os frontispícios com imagens e letras de alfabetos indecifráveis, as lareiras; que repuxasse os cortinados que o vento teimava, sempre, em fazer voar. As estátuas pequenas de diversos motivos, os espelhos, as jarras, os quadros e as tapeçarias; um mordomo careca de meia-idade, com a idade ignorada. Um mordomo, na Casa do ar. Um mordomo, na Casa do Lago, que ficou à porta. Até que também o mordomo desapareceu, e só restou, para percorrer a casa, a esfinge e o vento, que até então nunca se vira, a esfinge metálica que vira no quarto e que o seguira antes e até então, demasiado tímida, que dizia-lhe chamar-se Gnaro-esfinge, tendo o seu nome, Miguelti pensado, uma tonalidade violeta, usando a sua forma de mente para lho dizer, evitando a fala; (e) Miguelti percorria a casa com a Gnaro-esfinge atrás de si a segui-lo, semi-escondida, querendo fazer-lhe perguntas, da maneira que Miguelti já sabia que ela ia “falar”; demasiado tímida, esta esfinge. Eventualmente, desistiu. O interesse que tinha em Miguelti era genuíno, verdadeiro. Quando ganhou coragem, finalmente projectou-se no ar e abriu as suas asas metálicas, agarrando Miguelti com os seus braços estendidos em frente; abraçando-o depois, procurando não o magoar, girando no ar numa longa pirueta, num longo gesto contínuo e elegante, fechando as asas sobre si e sobre o seu corpo, e saindo da casa por uma das muitas aberturas num das grandes salas para o céu aberto, abraçado ao aventureiro, caindo a pique, para baixo para baixo, em direcção a um solo invisível.
PARTE 8:
quinta-feira, 20 de maio de 2010
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